Foto: Fred Loureiro/ Secom-ES
Viver é ato contínuo e mesmo repetitivo, requer ajustes e inovações. Começamos no mundo com o primeiro choro que abre nossos pulmões e permite que o ar nos preencha, trazendo também com ele os lamentos do mundo que andou a percorrer até ser sofregamente inspirado para dentro daquele pulmãozinho que ainda nem sabe o que é respirar. Deste primeiro penetrar do mundo, nós nele e ele em nós, começa uma relação modificadora para ambos.
Muito já foi dito sobre este simbólico choro nasciturno, mas penso que ainda podemos dizer um pouquinho mais. Principalmente depois de já termos inspirado e expirado tantas vezes que o número desta interação - eu-mundo, mundo-eu- é algo tão absurdamente imenso que não ousamos sequer tentar calculá-lo. Pode parecer prepotência dizer que a ação modificadora também é feita por nós ao penetrarmos neste velho mundo, mais antigo que o próprio pensamento humano. Mas, dependendo do que iremos nos tornar veremos que acontece sim e, infelizmente, nem sempre (ou, diriam os mais pessimistas, quase nunca) de forma positiva para o nosso bom e velho planeta Terra.
Neste mês de novembro completa um ano que acompanhei horrorizada a terrível tragédia que vitimou o povoado de Bento Rodrigues e continuou seu caminho de destruição e morte até atingir o mar. Quilômetros e quilômetros de vidas modificadas e/ou destruídas por seres humanos que também choraram na primeira golfada de ar que respiraram do planeta... quem são estas pessoas que planejaram e permitiram que sua breve estadia neste planeta causasse tão profundas, devastadoras e duráveis modificações na vida de outras milhares de vidas atuais e de outras, ainda vindouras?
Em uma escala menor, mas não por isso menos importante, tenho acompanhado os abusos feitos contra o rio de minha terra natal. O nosso rio Santo Antônio - um dos afluentes ainda vivo do massacrado Rio Doce- agonizando, perdendo suas águas para os minerodutos e expondo aos olhos da população ribeirinha as pedras e cascalhos de um leito que nunca antes havia se mostrado assim, tão desnudo de sua preciosa vestimenta líquida e vivificante... o nosso vale órfão da mãe que sempre fertilizou e embelezou suas terras. As próprias areias deste leito fúnebre sendo retiradas por pessoas que não conseguem perceber que a vida do vale está se escoando, seca e arrancada, transportada de si mesma num caminho de destruição e morte.
Pensando um pouquinho mais na história recente do nosso pedaço de mundo e expandindo o olhar por outras terras brasílicas, nos lembramos que há poucos meses vimos - e que ainda estamos vendo acontecer - destituições e prisões de pessoas que antes comandavam e coordenavam o uso e o abuso de tantas outras que também promoveram ações modificadoras pelo país afora. Na esteira deste outro mar de lama fétida e mortífera, neste jogo de dança das cadeiras no poder, nos vem à memória ações ligadas a esses mesmos nomes agora abertamente citados como autores de “generosas” dádivas e outorgas irresponsáveis: derrubada de matas, expulsões de moradores e sitiantes de suas terras ancestrais, desvio e captação do fluxo natural das águas que regiam essas vidas. Águas e terras, vidas do planeta que, para eles só são vistas e consideradas como uma provável fonte de geração de riquezas imediatas e pessoais.
Modificaram sim, talvez para sempre, também a nossa ingênua credulidade em que sabiam o que faziam, tudo faziam para desenvolver o país para o bem e participação de todos.
Um vocábulo que ouvi muito nestes dias de acompanhar as notícias diárias desses mandos, desmandos e disputas foi o verbo “apear”. Consultando o velho e confiável “Aurélio”, lá encontrei:
Apear: -a-pe-ar v.t.d. 1.Fazer descer. Int.e p. 2. Pôr a baixo, derrubar. 3. Descer de montaria ou viatura. Conj.:10]ap]ear]....
Apear é preciso, é transitivo, é direto, é verbo, é ação... Apear de nós o ledo engano que somos donos do planeta e podemos usá-lo como bem queremos. Apear de nós o egoísmo que impõe aos outros a miséria e a desgraça que não queremos para os nossos. Apear enfim de nós, meros mortais, a ideia de que o planeta precisa da nossa presença nele. Quem precisa do planeta somos nós e, penso que se a velha, boa e tolerante mãe Terra pudesse falar com voz que entendemos, diria do alto de sua sabedoria ancestral:
-Apeie-se de mim, parasita ingrato e pestilento. De ti só preciso da tua ausência. Basta de tanto conceder vida à existência de tua raça insana enquanto só recebo de volta a morte e destruição dos meus outros filhos viventes.
Finalizo hoje com um trecho de autoria de Guilherme Antunes, encontrei nesta fala uma reflexão que veio de encontro aos meus próprios sentimentos e pensamentos:
“Talvez exista um lugar que negamos haver em nós justamente porque nos pede atenção; e que mais ignoramos quanto mais nos convoca. Um lugar a guardar nossos vazios. Um cativeiro para as nossas rejeições. Um cárcere para todos os medos. Um espaço invisível a desabitar-nos por inteiro, desocultado apenas pela inconsciência. A consciência pouco sabe e pouco desconfia. Acredita no que vê. Magoa-se com a palavra. Apaga se ameaçada. Sujeita às interrupções. A inconsciência é o palco em que a vida se ouve mesmo calada. Sabe da lágrima, da culpa, dos nós. Aguarda-nos no sonho, na palavra, no erro. Espera-nos do lado avesso da liberdade. Uma liberdade que preservamos às custas deste lugar que negamos haver em nós e que nos convoca. A liberdade que somente acreditamos. Aquela que não é. Aquela onde nunca estamos.”
Desta reflexão me vem a pergunta que não quero calar. Depois de destruirmos todas as condições do planeta que nos proporciona vida, teremos uma outra casa a conquistar no universo? Abandonaremos os escombros de uma Terra devastada, tóxica, morta e mortal para nos instalarmos num novo planeta e começarmos tudo de novo? E, mesmo que os avanços tecnológicos nos possibilitem esta façanha dantesca, teremos a inteligência de perceber os grandes erros cometidos e não estaremos apenas ignorando uma história que já aconteceu e que estará se repetindo ad infinitum?
Não quero com essa projeção de futuro meio apocalíptica fugir da realidade atual, mas se não começarmos a nos conscientizar e mudar nossas ações hoje, o que teremos que modificar no passar dos anos? Ou a pergunta real seria, o que ainda teremos para tentar modificar?
Tenho que acreditar que algo acontecerá antes. É como naquela velha historieta do pai que estando trabalhando teve que distrair o filho perto de si. O pai pega de uma revista colorida a foto de um mapa mundial, recorta-a em diversas partes, mistura tudo e entrega para a sua criança pedindo que monte o quebra-cabeça enquanto ele, pai, tem o tempo suficiente para terminar a própria tarefa... qual não é o espanto do pai após o filho lhe mostrar o quebra-cabeça montado certinho em poucos minutos. Surpreso, ele pergunta ao filho como conseguiu ser tão rápido na conclusão do desafio. O filho, feliz e orgulhoso, responde com alegria:
-É que nas costas do mundo tinha o retrato de um homem. Eu montei o homem e quando virei os pedaços do homem que tinha consertado, o mundo tinha ficado todo no seu lugar certinho...
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