Tempos estranhos, dias de novidades, fim de um ciclo, começo do fim, primeiros dias do resto de sua vida...são tantas as formas de manifestar o próprio espanto, de tentar encontrar uma palavra, uma frase, uma expressão que seja, mas que contenha e transmita o sentimento que nos toma. Queremos nos expressar da forma que desenhe na mente do outro a ideia exata daquilo que está vivo dentro da gente.
Foi assim mesmo que me senti ao ler a notícia, as letras pelejando para formar um sentido dentro da minha mente.
Gaslighting, essa palavra lutava para ser lembrada, trazida à tona do consciente e dar liga aos pensamentos que me vinham. Nunca consegui deixar que um branco de memória passasse para a gaveta do esquecimento sem antes procurar entender uma ideia recorrente.
Sendo assim, lá fui em busca do meu sossego mental, sempre encontrado ao abrir o velho e bom dicionário que me socorre.
Nada! Também, né, nem era uma palavra da língua pátria. E aí vem o socorro nos ganhos que a modernidade nos oferece. Bingo! Estava lá, no Google: o termo gaslighting, um tipo de abuso psicológico, em que o abusador faz com que sua vítima venha a duvidar e questionar a própria sanidade.
Por que esta palavra ficou lutando para ser lembrada? Porque foi a última notícia que li falando sobre o trabalho a que o Jô Soares estava se dedicando. Pesquisando, escrevendo e adaptando um texto para o seu novo projeto como diretor teatral.
Ele se encantou por um filme de Ingrid Bergman, de 1944 - Gaslight (À Meia Luz, no Brasil), que rendeu a ela um Oscar pela sua interpretação magistral, na pele da personagem Paula. O filme é baseado na peça teatral Gas Light de autoria do escritor inglês
Patrick Hamilton (1904-1962), que estreou em Londres nos meses que antecederam a Segunda Guerra Mundial.
O diálogo final do filme é algo que não se esquece. A protagonista da história e o detetive que ajudou a desvendar o mistério e prender o abusador olham para o céu nublado e conversam com ar desolado:
Paula:
-Esta será uma longa noite.
Detetive Brian:
-Mas irá acabar. As nuvens começaram a clarear. De manhã, quando o Sol nasce, às vezes é difícil acreditar que sequer houve uma noite. “
Mais atual, impossível! Do alto de sua cultura, inteligência e gosto apurado parece que o grande humorista e teatrólogo não sentia os 84 anos de idade. Ele se pareava com um fogo juvenil no enfrentamento dos problemas detectados pelo nosso mundo, principalmente o feminino, dando seu tempo e seu talento para contribuir com o desmanche das técnicas tóxicas que insistem em se manter no dia a dia de tantos misógenos e feminicidas.
Que pena! Ele morreu sem estrear sua peça e não teremos o prazer de ver e comentar, mais uma vez, o seu genial talento.
Para quem teve a honra e o prazer de ter tantos talentos brasileiros fazendo parte de suas horas de lazer, estudo ou entretenimento é muito difícil desapegar de seus conceitos de boa arte e se acostumar a ver “Pablos” e “Anitas”, entre linguagem neutra(?) e “obras” que mais parecem ter sido gestadas nos intestinos, fazerem a cabeça da nossa juventude.
Há quem goste, sei disso, e tenho respeito ao direito individual da escolha, mas me reservo o direito de lamentar, caso seja essa, a escolha do tipo de cultura que há de vigorar de agora em diante.