Imagem: Ilustrativa
“Como professora e administradora escolar, adquiri o hábito de pensar as pessoas como fontes maravilhosas de sentimentos e reações nem sempre expressadas de forma fácil de se compreender. Continuo convivendo diariamente com as crianças, embora em doses homeopáticas (risos). Das turmas com 30, 35 por hora em sala de aula ou até de 1200 por dia na direção de escola, passei a dois diariamente, meus netos, um com quatro e outro com dez anos. Com eles ainda aprendo a ver o mundo como algo mágico que se oferece para ser desbravado. Com os adultos procuro exercitar a compreensão e aprender a força de se lidar com a realidade”
Na semana passada embarquei numa viagem por minhas memórias, tentando resgatar donde foi que começou a minha vocação para protetora da vida de animais de rua. Tive como companheiro nas trilhas e trincheiras destas lembranças um gigante persa, o gato Felline, a quem peço hoje, a ele e a você também, que se mantenham comigo um pouquinho mais. Temos ainda alguns trechos deste caminho para percorrermos juntos.
Todo gato é um caçador hábil, indiscutivelmente. Aprendi recentemente, motivada pelo cuidar das minhas duas gatinhas atuais, que um gato se lambe não só para se acariciar como muita gente pode pensar. Ele se lambe porque na sua saliva existe uma espécie de desodorante natural que tira do pelo dele todo e qualquer cheiro que possa denunciar sua presença para a futura presa. Pena que na saliva não exista um detergente de óleo queimado que valha como banho de higiene também, né Felline? Sem traumas, só uma pequena observação. Além disso, a saliva também é um cicatrizante e antisséptico e isso é muito legal para eles, pois com a saliva e a língua áspera eles se refrescam, se livram dos pelos soltos e de parasitas que podem se aderir ao corpinho deles.
Para um gato que, além de caçador ser também um massagista, e gostar de brincar de esconde-esconde com dois adolescentes nem sempre muito bem intencionados, isso é outra história, outra história do Felline.
O apartamento é bem pequeno, entre a sala de dois ambientes e os quartos há um corredor e, entre eles, uma coluna estrutural em forma de T, fechada nos dois lados, com uma passagem que dá frente para o banheiro, onde há um pequeno vão. Felline descobriu que quando se punha em pé nas patas traseiras e com as costas apoiadas na parede, ficava perfeitamente invisível para quem estivesse vindo do quarto para a sala.
Ele ficava assim, com a respiração presa e as garras livres, prontinho para pular em cima do primeiro que se esquecesse que, com o Felline em casa, fora irrecusavelmente convidado para brincar de “pegador”.... o berro de susto avisava a todos que ele tinha pegado mais uma canela distraída. Ponto para sua majestade, o rei dos caçadores de canelas arranhadas, naturalmente reeleito o primeiro e único, soberano e senhor imbatível do pedaço!
Outra característica do nosso hóspede imposto era a atração que ele sentia por pessoas deitadas de costas. Os meninos gostavam de se deitar no sofá, lendo, estudando ou ouvindo música (um pequeno parêntese sobre adolescentes: rock, metal, vizinhos e pessoas cansadas... o som fica baixo quando eu estava em casa. Quando eu não estava, que combinassem com o vizinho que viesse reclamar qual a altura adequada... ou, pelo amor de Deus, que usassem fones de ouvido para a felicidade geral da nação!).
Voltando ao sofá e ao Felline, era só perceber que alguém se deitara que lá vinha ele, subia nas costas disponíveis e começava uma longa sessão de massagem gatesca, recheada de ronronadas de brinde. Eu confesso que adorava deixar que ele “amassasse pãozinho” com suas patinhas macias nas minhas costas cansadas. Você já reparou como são as “almofadinhas” rosadas que os gatos possuem na planta dos pezinhos deles? São uma delícia de maciez quando nos tocam ou nos deixam tocar nelas.
Um dia, do qual me arrependo até hoje, fechei a janela da sala na cara do meu hóspede Felline. Puxei a parte aberta antes que ele conseguisse pular de volta para dentro de casa, novamente todo imundo de óleo queimado. Eu estava brava demais por ele ter saído de novo, logo depois de tomar o banho sessão -escândalo-de-unhadas-e-miados-desaforados- daquele sábado....
Fechei para que ele esperasse lá fora enquanto eu lutava para me acalmar e tivesse ânimo para lhe dar o segundo banho-pesadelo no mesmo dia. O que eu nunca poderia ter adivinhado naquele momento era que aquela minha atitude grosseira ofenderia terrivelmente a dignidade do seu imenso ego felino.
Ele virou as costas, pulou de novo no pátio do estacionamento e saiu andando calmamente com aquele seu porte elegante e imponente. A longa cauda peluda e branca (muitíssimo encardida) bem empinada, sem olhar sequer uma vez para trás.
Eu o procurava pelo bairro, tentando me convencer de que ele voltaria. Os meninos tocavam terror me falando que haviam sentindo cheiro de churrasco de gato, na hora do almoço dos pedreiros do prédio que estava sendo construído do outro lado da rua. Eu tentava desesperadamente ler a expressão dos olhos deles, pedindo já quase chorando que me dissessem a verdade.
Os danados dos meninos se divertiram com meu pavor por quase uma semana, negando e anulando todas as sete vidas que um gato tem. Até o dia que descendo a minha rua a pé, para o meu alivio e alegria, vi o Felline de novo. Vivíssimo, branquíssimo, belíssimo e imponente. Deitado todo cheio de pose, numa linda almofada azul de cetim, colocada atrás da tela que protegia a janela da frente do apartamento do 3° andar do prédio do início da rua...
A verdadeira dona dele nunca o foi buscar, reclamando o Felline de volta para si e eu, tendo a certeza de que ele tinha encontrado um novo e seguro lar, o deixei lá, morando e sendo amado, se exibindo para os que se dessem ao trabalho de erguer os olhos para a sua torre inexpugnável. Eu o vi na mesma almofada por incontáveis vezes, generosa e imponentemente se deixando admirar por nós, os seres mortais passantes da sua rua...
E foi assim, com todos os sustos e prazeres de cuidar de um bichinho que eu não havia escolhido para ser meu, que comecei a olhar com mais preocupação, carinho e atenção para os animais que vejo andando soltos e sozinhos, abandonados pela cidade.
Hoje tenho comigo alguns que eu mesma resgatei e são eles que me dão alegria por morarem em minha casa. Dentre eles, as duas gatas que não me deixam esquecer dos erros e acertos que aprendi com o Felline e que, por isso mesmo, procuro melhorar no cuidado com elas. São meio independentes, desconfiadas e curiosas, são muito ciosas de seu valor próprio e são também maravilhosamente amorosas e companheiras. É assim que vejo como são, estas lindas bolinhas de pelos macios e garras afiadas, chamadas de gatos.
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