Foto: Arquivo pessoal - E - impenetrável, imutável e sereno ele vigia o vale que se abre a seus pés, tudo sabe mas nada revela....Olhos pétreos, semi cerrados como embalados num sono secular pelos murmúrios distantes do rio...Olhos pétreos semiabertos a ouvir atento as canções do vento que lhe traz segredos....segredos de quem pensava que jogando palaras ao vento estaria à salvo dos ouvidos dos curiosos...Pedrão, pé e grão....Pedrão, paredão...Pedrão, perderão...Pedrão, perdão...Pedrão, porão...Pedrão, perdão....Pedrão, pés virão....
Estou de volta ao meu vale. Olho a lua que acende seu holofote amarelado e brilhante, revelando para a noite as cinco faces do “Pedrão”. Contemplo o espetáculo que não me canso de ver se repetir e fico pensando em quantas de mim eu serei capaz de reconhecer ao fazer esta viagem de volta para dentro da menininha caolha que hoje volta com os cabelos brancos da vovó que amo ser, a face marcada pelo passar dos anos e o coração repleto de mil ternuras por cada recordação que esta paisagem ainda imutável desperta em minhas memórias, das mais remotas às mais recentes.
Certa vez, há muitos anos já passados, li uma frase que me intrigou muito:
-'Só há Beethoven e Hegel'
Assim mesmo, categórica, curta, indiscutível e incisiva.
Acontece que eu li isso numa fase interessante de minha vida de menina caolha, irmã-filha do menino Zé Passarinho, admiradora incondicional do seu outro irmão Menino Canhoto e filha menina caçula da menina dos dedos verdes, das mãos de fada tecelã de belíssimas tramas e bordados, dona de uma fé inabalável e declamadora dos poemas de Cora Coralina. Da jovem mulher que ficando viúva aos 39 anos de idade, achou em Deus a força e a coragem para criar seus 13 filhos, sem nunca perder a certeza de que ninguém ganha de Deus um frio maior do que o cobertor que Ele também manda junto...
O quadro verde atrás de minhas costas estava vazio, nada de longas anotações a serem copiadas entre cochilos e cochichos. Éramos muito jovens, elas e eu, era noite e a gente queria mais era estar lá fora, namorando a lua e rindo das nossas bobagens pós(?) adolescência. Mas eu já era mãe e também era professora.
Ousadia insana. Nos meus dias de arrastar as tais pesadas e barulhentas cadeiras de palhinha, aceitei o convite. Chamada para dar aulas de filosofia (e outras tantas matérias mais) para as próprias colegas que estudavam no mesmo colégio onde eu acabara de adquirir meu diplominha de ensino médio, uma vez que voltara sem concluir o curso e não havia adaptação de matérias, voltei lá para o primeiro ano e comecei tudo de novo... O diploma tinha um nome pomposo e que pesava como chumbo sobre meus ombros: Magistério!
Eu era só uma molequinha vesga, meus irmãos sempre foram classificados entre os melhores professores que a cidade oferecia. Meu irmão José, o Passarinho Virgílio, ensinara inglês para turmas incontáveis. O outro irmão, o chamado Beija-flor pela mãe e para mim, o Bodão, menino canhoto empaturrado de saberes e sabedorias que, já crescido, foi meu melhor professor de História. Mesmo eu tendo saído da cidade para estudar no Colégio Champagnat, um dos melhores de Belo Horizonte naquela época, nunca encontrei professores melhores que meus irmãos.
A irmã mais velha, um misto de irmã-mãe-melhor amiga-musa inspiradora, a minha Dindaminha, conquistadora de meu coração e de minha admiração intelectual era também adorada e respeitada por todos os que tiveram a felicidade de aprender com ela os mistérios das ciências, o encantamento da biologia e tantos Programas de Saúde, entre outras coisas. O laboratório de Ciências que ela montou no Ginásio Estadual e onde dava suas aulas mágicas é algo que merece ainda explorar mais, ali, na próxima curva do caminho...
Pois então, de costas para o quadro verde, sentada em cima da primeira carteira e com os pés apoiados na cadeira, a menina caolha falava, falava para as meninas do primeiro, do segundo e do terceiro ano, cada ano em um horário, das coisas que andava lendo. Dos livros que estava pesquisando para aprender um pouco daquilo que lhe fora dado como missão de ensinar. Eu amava estes momentos, as meninas ali misturadas, tão próximas, tão moças todas, quase irmãs na amizade e na confiança mútua, colocavam ideias umas para outras, sem medo de críticas, sabíamos que estávamos todas na busca de entender algo muito maior que nossa juventude e poucos conhecimentos permitiria serem chamados de nossos saberes...
E vem esta frase, citada pelo autor que estudávamos naquele tempo, para me desafiar a "devorar" mais e mais literatura num dia que continuava a ter 24 horas, nas quais havia também outra criança curiosa, meu filhinho, o meu menininho inteligente e esperto que demandava minha atenção constante.
Minha mãe entrava de mansinho em meu quarto na madrugada, consertava a cobertinha desarrumada do meu bebê de 3 aninhos que dormia no berço ao meu lado. Depois ela vinha até minha cama, tirava o livro que havia caído na minha cara quando o cansaço enfim me venceu, apagava a luz e ia, só então, ela mesma dormir um sono tranquilo...
Sinto muito, há mais que Beethoven e Hegel, há anjos que cantam magníficas, desafinadas, roucas e amorosas cantigas de ninar para fazer o netinho dormir enquanto a mãe dele batalhava dando aulas para aprender.
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